quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

cantara (live '94)

Joaninha

O menino fixou seus olhos nas costas vermelhas da joaninha. Costas vermelhas cravejadas de bolinhas pretas. O menino fixou-se, novamente, numa bolinha nas costas da joaninha, bem acima, quase ao centro. Fixou os olhos como um microscópio que avança, potente, eletrônico. Adentrou com os olhos-microscópicos a bolinha nas costas da joaninha e foi avançando, lentamente, vislumbrando reentrâncias, pigmentos, veios, crateras e, por fim, átomos. Ao chegar aos átomos parou, ou melhor, tentou ir além.
Havia ali uma peneira de átomos. Além dos átomos o que haveria? pensou. Certamente o invisível. Além do invisível o que haveria? O menino matutava, lia livros de Ciências, matutava. Começou a ler livros de física quântica, matutava. Um dia, olhando para o corpo da joaninha que espetara num alfinete, algo aconteceu que mudou para sempre o menino. O espírito da joaninha apareceu-lhe e disse: o que você vê e não vê é o invisível além do visível.
“O invisível além do visível”. O que será que quis dizer o espírito da joaninha? Pensando nisso, o menino ia para cama todas as noites, matutava. Dias, semanas, meses, matutava. Um dia, matutava, foi para a cama e esqueceu-se do que matutava. O espírito guardião da joaninha apareceu-lhe e revelou: você destruiu um ser por simples curiosidade. No universo em que vivemos isso é um crime grave. O que farás para repará-lo? Se não fizer nada, você nunca saberá o que há além das manchas das costas da joaninha. O menino, no sonho, respondeu: eu farei tudo para preservar as matas onde vivem as joaninhas. Além disso, vou estudar tudo sobre joaninhas, tornar-me-ei um especialista. O espírito guardião da joaninha assentiu com a cabeça, e o menino despertou.
Cresceu, estudou, pesquisou nas melhores universidades do mundo e tornou-se o Phd em joaninhas. O maior especialista do mundo em tais insetos ganhou muito dinheiro, comprou terras, plantou árvores. Viajava o mundo todo a fazer campanhas para a preservação das matas e das estimadas joaninhas. Mas, ainda não sabia o que haveria por trás do invisível, das manchinhas circulares das costas da joaninha. Recordou-se do sonho, sobre o que o espírito guardião da joaninha assassinada lhe dissera. Parecia loucura, tudo uma loucura. Chegou a duvidar, às vezes, da própria sanidade. Seriam os cientistas geniais loucos?
Ao completar 70 anos o ainda menino foi à floresta amazônica a convite de um xamã. Tomou de uma bebida sagrada que produzia visões e, finalmente, conheceu a verdade por trás do visível. Em êxtase, provocado pelo “Vinho dos Espíritos”, apareceu-lhe O Grande Criador de todas as joaninhas. Teve visões, o universo inteiro era composto pelas costas de uma imensa joaninha e, as pintinhas, de todas as cores, formavam universos dentro de universos, dimensões dentro de dimensões. Dos olhos dessa imensa joaninha saiam luzes e fogos que formavam outros seres além dos universos conhecidos. De repente, ao abrir as asas para alçar vôo, tudo se transformou no nada, e a joaninha infinita foi tragada pela luz de um sol imenso que radiava luz azul. O menino, agora maduro, pode perceber que além do visível somente há o nada, o NADA que é TUDO. Mas isso tudo depende do ponto de vista de quem está observando... O observador pode subverter a ordem de todas as coisas, pois aonde vai a atenção vai a força que cria e recria tudo e nada.

(Conto do livro inédito "Luz & Sombra" - Copyright by Agnaldo Barcaro)

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Insight

- Cansei! – disse Eduardo. – Vou jogar a toalha...
- Não desista! – disse Rosa, sua mulher, inutilmente.
Eduardo saiu, bateu a porta e não voltou mais. Rosa não teve forças para reagir, ajudar o marido em seu desespero. Dívidas, doenças, família – tudo jogado para o alto.
“Viver é sofrer”, pensava Eduardo. “O cotidiano nos devora, é inútil prosseguir”. “Mas o que vou fazer?” “Rosa vai sofrer, as crianças vão sofrer”. “Não estarei sendo egoísta?” “Será a minha vida pior do que a das outras pessoas que habitam este mundo?” “Na verdade, estou numa encruzilhada: sem forças para viver e sem coragem para morrer”. “Bingo! E agora José?”
Eduardo caminhava cabisbaixo e pensativo. Estava no centro da grande cidade, a metrópole que massifica e transforma as pessoas em números. Nas esquinas encontrava os personagens de sempre, os náufragos do sistema: prostitutas, punguistas, estelionatários, mendigos e falsos mendigos simulando ferimentos inexistentes, cegos e falsos cegos, ciganas que lêem o futuro, tiras corruptos, compradores de ouro de procedência duvidosa, cobradores de impostos e pastores berrando por almas perdidas e dízimos... Eis a matrix!
“Não, não suporto mais isso!”, suspirou Eduardo, caminhando sem destino. Num átimo, quando ergueu os olhos, leu numa placa que um homem levava às costas. Não vendia e nem comprava ouro. Leu, e aquilo o tocou: “OS EVENTOS SÃO SONHOS – SAIA DA ILUSÃO – NÃO EXISTEM PROBLEMAS!” Eduardo pensou: “Bah, mais 171”. Mas resolveu inquirir o homem. Bateu em seus ombros e, ao virar-se, teve um susto. O homem que carregava a placa vestia uma máscara de esqueleto. Na placa da frente estava escrito: “SER OU NÃO SER, EIS A QUESTÃO!”. Abaixo da frase, em letras miudinhas, o autor: Shakespeare.
Ante o susto de Eduardo o homem não disse nada, era mudo, apenas entregou-lhe um folheto. No folheto pode ler: “SAIA DA MATRIX EM MEIA HORA! – INSIGHT GRÁTIS!” – Av. Paulista, 1455 – 11º andar – sala 111 – Centro. “Bem, já que é de graça, não custa ir ver, nem que seja a última coisa que eu faça”. Não estava longe, caminhou meia hora e chegou. Um belo prédio. Pegou o elevador e desceu no 11º andar e se dirigiu à sala 111. Uma moça, vestida de esqueleto, o atendeu, indicando uma poltrona. Ali havia umas quinze pessoas. Uma grande porta preta, fechada, dava acesso a um outro cômodo. Não demorou, e um homem também vestido de esqueleto, abrindo a porta preta, pediu para que entrassem. O local era escuro e iluminado por velas negras. No chão, sobre o carpete, havia algumas urnas funerárias. Algumas pessoas, ao vê-las, saíram dali. Eduardo, não tinha nada a perder, ficou.
- Se querem SER entrem nos caixões! – disse o homem, em tom imperativo. - Todos os seus problemas serão dissolvidos, porque eles não existem!
Umas cinco pessoas entraram, cada qual em um caixão. Eduardo entrou, deitou-se e a tampa foi lacrada. Havia ar ali, ainda bem. Um som estranho foi ligado dentro de cada caixão. Parecia um motor de caminhão que roncava lentamente, mas depois o som foi subindo, subindo e Eduardo “apagou”. Ao dar por si, viu que estava num local onde uma luz branca e brilhante reinava. Só havia ele ali, aquela luz diamante e brumas. A paz reinava, não sentiu medo. A ansiedade e a vontade de “sumir” desaparecera. Acreditou que estava morto. De certo modo era verdade, não tinha vontade de voltar. Não conseguia pensar ali. Só paz, luz e uma sensação de eterna harmonia e felicidade. Num instante aquilo acabou; ouviu o som de motor novamente, a tampa do caixão foi aberta. Ele saiu, ainda zonzo.
- Muito bem! Agora, se puderem e se sentirem gratificados, deixem sua contribuição na saída! – Gritou o homem-esqueleto. – O Segredo é: Não é o que acontece que destrói ou constrói uma pessoa, mas sim, a sua reação mental ao fato. – Não se identifiquem com os pensamentos! São eles que “poluem” o seu rio interior... Observem o observador! DESAPEGUEM-SE! NADA ACONTECE FORA, MAS DENTRO!
Eduardo saiu, feliz, um riso estampado no rosto. Não tinha um centavo no bolso, deixou o relógio. O homem-esqueleto fez-lhe uma reverência com a cabeça, e ele saiu, caminhando sob o sol, leve, como se caminhasse sobre ovos. Voltou para casa, para Rosa e as crianças, sabedor que agora estaria no “sistema” mas, ao mesmo tempo, não faria parte dele. Emancipara a sua alma. Era, agora, dono de si mesmo e de seus pensamentos e, feliz, começou a assobiar uma canção antiga. O refrão dessa canção dizia, mais ou menos assim: Que mundo maravilhoso!

(Conto do livro inédito "Luz & Sombras" - Copyright by Agnaldo Barcaro)

Mahatma

Crisóstomo era imperturbável.

Nada o abalava: a vida ou a morte, a riqueza ou a pobreza, a saúde ou a doença – nada!

“Tudo é impermanente”, dizia. “A morte é imprevisível e inevitável”. “O mundo é ilusão”. “Os eventos são sonhos”. Assim seguia a vida, centrado em seu mundo de paz eterna e eterno agora.

Ficou desempregado, passou fome em seu quartinho solitário. Crisóstomo, sempre imperturbável, em paz. Logo surgiu outro emprego, voltou a comer. Depois, seus pais morreram em um assalto, ele foi e providenciou o enterro. “Ação e reação, nada acontece por acaso”, disse, sem derrubar uma lágrima. O ciclo se repete, a vida se alimenta da morte. Colhemos sempre o que plantamos.

Para os poucos parentes que se achegavam a ele, Crisóstomo, de quarenta e poucos anos, não passava de um louco excêntrico, frio e insensível. Não gostava de julgar. Via somente a essência das pessoas, de tudo. “O mundo é perfeito!” Um solteirão, louco varrido. Encarava a nossa realidade como um campo de concentração, com dias ruins e dias bons. Dizia que um dia sairia do campo, “iria para outras moradas, outros universos vibratórios, outros mundos-escola”.

Um dia ao atravessar uma rua, distraído, foi atropelado. Teve que amputar uma perna, aposentou-se por invalidez. “Somos 100% responsáveis pelo que acontece com a gente”, disse, imperturbável, após o ocorrido. Sua aposentadoria era miserável, mal dava para pagar o quartinho entulhado de livros e revistas por todos os lados. A comida era escassa, basicamente aveia e leite, que batia num liquidificador comprado de segunda mão, todos os dias. Às vezes, comprava algumas bananas para enriquecer o menu. Apesar de tudo, sentia-se feliz, um Buda, um ser conectado com o universo infinito. Passava os dias lendo e escrevendo em um caderno, pois não tinha computador.

Meses depois do atropelamento, Crisóstomo recebeu a visita de quem o atropelara. No dia do fato, desmaiou, acordando somente após a operação, quando constatou, imperturbável, que só tinha uma perna. A atropelante era uma bela moça de vinte anos, filha de um industrial, estudante de medicina. Ananda, de corpo esguio, tez cor de chá, cabelos pretos, longos e lisos, tendo nas faces, a iluminar como num céu sem nuvens, duas luas novas que perscrutavam tudo. Crisóstomo, apoiado em sua bengala, com seu pijama puído e de uma perna só, chinelo no único pé, foi atender a porta. Tomava o desjejum de sempre: aveia e leite num copo de louça trincado. Ao se deparar com a vítima de seu ato, Ananda não acreditou no que vira. Seu carro, um Mercedes importado, ficou praticamente destruído. Não sabia o que fazer para se redimir, para ajudar o infeliz à sua frente. Conversaram durante meia hora. Ananda se dispôs a pagar seu aluguel e a ajudá-lo com um salário mensal, pelo resto da vida de Crisóstomo. Este negou veementemente dizendo que já tinha tudo dentro de si.

Na hora de partir, Ananda vislumbrou o caderno onde Crisóstomo escrevia. Pegou-o e abriu numa página central. Estupefata, leu o que ali estava escrito, com uma bela letra manuscrita, como se fosse delineada a bico de pena:

OLHOS BRILHANTES

Antes que as portas se fechem

Para mim,

Antes que a faca corte o fio,

A liga, a vida;

Partirei sempre para mim,

Átrio aflito

Do templo de minhas ilusões.



Há uma lança que circunda

Meu coração,

Também há um fogo

Que vive em mim

Em forna de nada,

Vento

Que acende a desconstrução

De quem fui.



Preciso encontrar

O que já não é mais,

Aquela inocência

Da alegria natural

Sem dor,

Chá com bolachas

Ao redor de avós e tias,

Primos e sobrinhas;

Manhãs, tardes, noites;

E um sino de igreja

Que me acorda aos domingos;

Tudo pleno, azul sutil,

Vida – onde estarás ?



Cadê a alegria,

Cadê a paz,

Onde foi parar aquele menino

Que acreditava nos homens grandes,

Nas crianças e nos amigos?

Não havia maldade,

Nem dor;



Somente uma flor na janela

e o brilho do sol nos olhos...





Boquiaberta, Ananda perguntou:

- Você escreveu isso?

Crisóstomo confirmou com a cabeça, o olhar e o rosto refletidos na vidraça. Segundos se tornaram horas, Ananda mexeu com a cabeça, como se tocada por um bruxo. Quase em transe, fitou Crisóstomo longamente, em seguida, num insight ancestral, perguntou:

- Quer casar comigo?

Crisóstomo, imperturbável, olhos ainda fixos na vidraça, respondeu:

- Por que não?

(Conto do livro inédito "Luz & Sombra" - Copyright by Agnaldo Barcaro)