domingo, 6 de fevereiro de 2011

Mahatma

Crisóstomo era imperturbável.

Nada o abalava: a vida ou a morte, a riqueza ou a pobreza, a saúde ou a doença – nada!

“Tudo é impermanente”, dizia. “A morte é imprevisível e inevitável”. “O mundo é ilusão”. “Os eventos são sonhos”. Assim seguia a vida, centrado em seu mundo de paz eterna e eterno agora.

Ficou desempregado, passou fome em seu quartinho solitário. Crisóstomo, sempre imperturbável, em paz. Logo surgiu outro emprego, voltou a comer. Depois, seus pais morreram em um assalto, ele foi e providenciou o enterro. “Ação e reação, nada acontece por acaso”, disse, sem derrubar uma lágrima. O ciclo se repete, a vida se alimenta da morte. Colhemos sempre o que plantamos.

Para os poucos parentes que se achegavam a ele, Crisóstomo, de quarenta e poucos anos, não passava de um louco excêntrico, frio e insensível. Não gostava de julgar. Via somente a essência das pessoas, de tudo. “O mundo é perfeito!” Um solteirão, louco varrido. Encarava a nossa realidade como um campo de concentração, com dias ruins e dias bons. Dizia que um dia sairia do campo, “iria para outras moradas, outros universos vibratórios, outros mundos-escola”.

Um dia ao atravessar uma rua, distraído, foi atropelado. Teve que amputar uma perna, aposentou-se por invalidez. “Somos 100% responsáveis pelo que acontece com a gente”, disse, imperturbável, após o ocorrido. Sua aposentadoria era miserável, mal dava para pagar o quartinho entulhado de livros e revistas por todos os lados. A comida era escassa, basicamente aveia e leite, que batia num liquidificador comprado de segunda mão, todos os dias. Às vezes, comprava algumas bananas para enriquecer o menu. Apesar de tudo, sentia-se feliz, um Buda, um ser conectado com o universo infinito. Passava os dias lendo e escrevendo em um caderno, pois não tinha computador.

Meses depois do atropelamento, Crisóstomo recebeu a visita de quem o atropelara. No dia do fato, desmaiou, acordando somente após a operação, quando constatou, imperturbável, que só tinha uma perna. A atropelante era uma bela moça de vinte anos, filha de um industrial, estudante de medicina. Ananda, de corpo esguio, tez cor de chá, cabelos pretos, longos e lisos, tendo nas faces, a iluminar como num céu sem nuvens, duas luas novas que perscrutavam tudo. Crisóstomo, apoiado em sua bengala, com seu pijama puído e de uma perna só, chinelo no único pé, foi atender a porta. Tomava o desjejum de sempre: aveia e leite num copo de louça trincado. Ao se deparar com a vítima de seu ato, Ananda não acreditou no que vira. Seu carro, um Mercedes importado, ficou praticamente destruído. Não sabia o que fazer para se redimir, para ajudar o infeliz à sua frente. Conversaram durante meia hora. Ananda se dispôs a pagar seu aluguel e a ajudá-lo com um salário mensal, pelo resto da vida de Crisóstomo. Este negou veementemente dizendo que já tinha tudo dentro de si.

Na hora de partir, Ananda vislumbrou o caderno onde Crisóstomo escrevia. Pegou-o e abriu numa página central. Estupefata, leu o que ali estava escrito, com uma bela letra manuscrita, como se fosse delineada a bico de pena:

OLHOS BRILHANTES

Antes que as portas se fechem

Para mim,

Antes que a faca corte o fio,

A liga, a vida;

Partirei sempre para mim,

Átrio aflito

Do templo de minhas ilusões.



Há uma lança que circunda

Meu coração,

Também há um fogo

Que vive em mim

Em forna de nada,

Vento

Que acende a desconstrução

De quem fui.



Preciso encontrar

O que já não é mais,

Aquela inocência

Da alegria natural

Sem dor,

Chá com bolachas

Ao redor de avós e tias,

Primos e sobrinhas;

Manhãs, tardes, noites;

E um sino de igreja

Que me acorda aos domingos;

Tudo pleno, azul sutil,

Vida – onde estarás ?



Cadê a alegria,

Cadê a paz,

Onde foi parar aquele menino

Que acreditava nos homens grandes,

Nas crianças e nos amigos?

Não havia maldade,

Nem dor;



Somente uma flor na janela

e o brilho do sol nos olhos...





Boquiaberta, Ananda perguntou:

- Você escreveu isso?

Crisóstomo confirmou com a cabeça, o olhar e o rosto refletidos na vidraça. Segundos se tornaram horas, Ananda mexeu com a cabeça, como se tocada por um bruxo. Quase em transe, fitou Crisóstomo longamente, em seguida, num insight ancestral, perguntou:

- Quer casar comigo?

Crisóstomo, imperturbável, olhos ainda fixos na vidraça, respondeu:

- Por que não?

(Conto do livro inédito "Luz & Sombra" - Copyright by Agnaldo Barcaro)

Nenhum comentário:

Postar um comentário